A difusão a partir da Inglaterra de modelos de produção industrial, de organização, de trabalho e das formas de ocupação do tempo livre do tipo conhecido como desporto foi notável. Parece razoável imaginar que as formas segundo a qual as pessoas utilizavam seu tempo livre seguiu de mãos dadas com a transformação da maneira segundo a qual trabalhavam.
É possível que, tanto a industrialização como a desportivização, tenham sido sintomáticas de uma transformação mais profunda das sociedades europeias, que exigia de seus membros uma maior regularidade e diferenciação de comportamento.
A sociedade européia sofreu, a partir do século XV, uma transformação que forçou os seus membros a uma lenta e crescente regularidade de conduta e de sensibilidade. O domínio da conduta e da sensibilidade tornou-se mais rigoroso, banindo quer excessos de punição e de complacência.
A mesma mudança de orientação pode ser verificada no boxe. As formas mais antigas de pugilismo não eram totalmente desprovidas de regras. Porém, os punhos eram desprotegidos e muitas vezes as pernas eram utilizadas nas lutas. A luta assumiu as características de desporto pela primeira vez na Inglaterra com a introdução de regras que limitavam os danos físicos aos adversários, eliminando o uso das pernas nos combates. Além disso, o aumento da sensibilidade foi verificado com a introdução das luvas e, com o tempo, pelo acolchoamento destas, para amenizar os danos físicos aos adversários.
No decurso do século XIX, e em alguns casos, na segunda metade do século XVIII, tendo a Inglaterra como exemplo, algumas atividades de lazer adquiriram características de desporto também em outros países. São características dos desportos modernos: regras escritas; sanções intrajogo bem definidas; presença de árbitros para conduzir as disputas; órgão centralizador de elaboração e fiscalização das regras.
A transição dos passatempos ou atividades de lazer a esportes, ocorrida na sociedade inglesa em meados do século XIX, encontra-se relacionado com o desenvolvimento da sociedade sob uma perspectiva global, se observarmos como se deu o desenvolvimento da estrutura de poder da sociedade inglesa. Estudos do desporto que não sejam simultaneamente estudos da sociedade são analises desprovidas de contexto. Neste período, os ciclos de violência abrandam, e os conflitos de interesses passaram a ser resolvidos de um modo que permitia aos principais contendores de poder governamental solucionarem suas diferenças, por intermédio de processos inteiramente não violentos, e segundo regras acertadas por ambas as partes.
Certamente, a elaboração destas regras não ocorreu de um dia para o outro. Verificaram-se lutas esporádicas e choques entre os que seguiam os diferentes grupos até, pelo menos, meados do século XVIII. Mas, de um modo progressivo, afastou-se o medo de que um dos grupos rivais e seus adeptos agredissem fisicamente ou aniquilassem os outros.
Progressivamente, a partir deste momento, não era mais aceitável socialmente que o indivíduo cometesse atos violentos, cabendo ao Estado o controle e o uso da violência. O controle da violência interna e a representação externa ficavam nas mãos dos militares, os verdadeiros representantes do Estado para coibir a violência física. A presença do Estado no cotidiano das pessoas foi sendo constituída de forma lenta e gradual, passando também pelas relações sociais existentes entre os homens.
"SURGIMENTO DO ESPORTE MODERNO E O PROCESSO CIVILIZADOR
Fernando Augusto Starepravo; Ricardo Sonoda Nunes (CEPELS/DEF/UFPR)"